"Ditosa voava solitária na noite de Hamburgo. Afastava-se batendo as asas energicamente até se elevar sobre as gruas do porto, sobre os mastros dos barcos, e depois regressava planando, rodando uma e outra vez em torno do campanário da igreja.

- Estou a voar! Zorbas! Sei voar! - grasnava ela, eufórica, lá da vastidão do céu cinzento.
O humano acariciou o lombo do gato.
- Bem, gato, conseguimos - disse ele suspirando.

- Sim, à beira do vazio compreendeu o mais importante - miou Zorbas.
- Ah, sim? E o que é que ela compreendeu? - perguntou o humano.
- Que só voa quem se atreve a fazê-lo - miou Zorbas.
- Suponho que agora te estorva a minha companhia. Eu espero-te lá em baixo - despediu-se o humano.

Zorbas permaneceu ali a contemplá-la até que não soube se foram as gotas de chuva ou as lágrimas que lhe embaciaram os olhos amarelos de gato grande, preto e gordo, de gato bom, de gato nobre, de gato de porto."

Luis Sepúlveda, in 'História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar'


Por vezes os grandes ensinamentos aparecem em histórias simples. Afinal não serão os grandes ensinamentos.. simples?! Tão simples como nesta história infantil :)

"Um pequeno prazer", verdadeiramente ;)
Recomendo.

Confiança

"A maior parte da nossa confiança nos outros é frequentes vezes constituída de preguiça, egoísmo e vaidade: preguiça quando, para não investigar, vigiar e agir, preferimos confiar em outrém; egoísmo quando a necessidade de falar das nossas coisas nos leva a confidenciar-lhes algo; vaidade quando uma coisa nos torna orgulhosos. No entanto, exigimos que se honre a nossa confiança.

Por outro lado, nunca deveríamos irritar-nos com a desconfiança, pois nela reside um elogio à probidade, ou seja, é a admissão sincera da sua extrema raridade que faz com que entre no rol das coisas de cuja existência duvidamos."

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'

Autárquicas 2005

Fiz as pazes com a blogosfera! Após este tempo de ausência do meu blog (as más línguas chamavam-lhe mesmo "o teu post") estou de volta :)

Muito foi falado sobre as autárquicas antes do dia 9; alguma coisa ou pouco se fala depois das mesmas terem acontecido. Talvez o assunto esmoreça pelo sentimento generalizado de frustração, pela sensação de tudo na mesma. Por todas as Fátimas, Isaltinos e Majores que, não obstante serem reconhecidos caciques inveterados, foram re-eleitos.. pelo povo. Por todo o seu mérito, transparência, honestidade e competência, foram re-eleitos..pelo povo. Alguns "premiados" com maiorias absolutas!!.. dadas pelo povo. E este argumento legitima tudo. Legitima nomeadamente aquele sentimento de que os "espertos" se safam sempre. Sentimento esse muito amargo e criticado.. pelo povo!

É politicamente incorrecto criticar o povo, os eleitores. A sua imensa sabedoria, o seu julgar acertado desferido pelo golpe do voto, constitui a mais suprema (qual divina!) justiça sobre os actos praticados pelos nossos políticos. Ou então não..

Analisando os resultados nacionais, verifica-se que a abstenção rondou os 40%. Significa isto que 4 em cada 10 eleitores portugueses "não está nem aí" para os seus autarcas. Para quem numa linha directa os representa, trabalha para eles. Não estamos a falar de eleições para um parlamento europeu que fica para lá do sol posto, de pessoas que não sabemos muito bem quem são, nem ao certo o que fazem. Estamos a falar dos tipos que mandam aparar a relva do nosso jardim, arranjar os passeios, tapar os buracos da estrada, mandam fazer as escolas primárias, constroem parques radicais para os dreads e lares para os velhos.. conhecem (ou deveriam conhecer) e têm o poder para resolver os verdadeiros e mais directos problemas que nos afectam todos os dias. E em relação aos problemas que não são da sua directa responsabilidade, cabe-lhes a tarefa de pressionar e influenciar quem de direito para os resolver.

Existe sem dúvida um déficit de formação democrática e cívica. Faço uma breve análise sobre a minha formação e os sítios por onde passei (passo): a escola, a família, os amigos e a sociedade em geral, os agentes educativos vários. Com raras e muito honrosas excepções (como o Escotismo), recordo-me de muito poucos espaços onde a vivência democrática, mais do que vivida e implementada, foi reflectida, explicada de forma sistémica.. evidenciada como verdadeiro e essencial valor da nossa sociedade! Mais raro ainda foi o reforço da participação democrática como suporte à própria existência da democracia. E isto faz todo o sentido quando analiso atentamente a "qualidade" de alguns autarcas, do seu projecto, da sua abnegação perante o povo que pretendem servir. A falta de participação democrática diminui em larga escala o leque de opções entre pessoas, ideias e projectos. Abre espaço para que alguns dos não bons (medíocres entenda-se) atinjam os lugares de decisão/acção. A mediocridade das suas acções/decisões deveria, num povo participativo e interessado, gerar contestação, alternativa.. mas num povo não participativo gera maior desmotivação, maior afastamento, maior desinteresse. O mérito e a nobreza das funções de governo declinam e afastam aqueles que não querem ser associados a algo tão desprestigiante como a política.

Mas a quem preocupa esta abstenção (a todos os níveis de participação)? Como se quebra este ciclo perigosamente solidificado?

No seu discurso final das autárquicas, Marques Mendes do PSD, a firmou estar "muito satisfeito com o nível de participação nestas eleições". E eu pergunto: ouve lá oh Marques.. passaste-te, não!? 40% dos portugueses ficou a partir cascalho de manhã e a bezerrar no sofá à tarde, incapaz de perder 20 minutos para expressar a sua vontade mediante o que é melhor para si nos próximos 4 anos, e há políticos "muito satisfeitos" com isso!? (/me dá uma grande caldo na testa do MM).

Será que se o número de lugares ocupados nos cargos políticos fosse directamente proporcional ao número de votos expressos.. Será que se 40% dos lugares da assembleia municipal, do executivo camarário e da ssembleia de freguesia ficassem vazios no próximo mandato porque 40% dos eleitores não sairam de casa, este seria um assunto preocupante para os partidos? Será que se assim fosse, não seríamos muito mais forma(ta)dos nas escolas, famílias, agentes educativos, para realmente sermos construtores pró-activos da nossa sociedade, do nosso meio? Será que não atenuaríamos a sensação recorrente de vivermos em espaços / com acções nos(as) quais não nos revemos?

Gostava que este fosse um daqueles casos em que é só rir e comer bolachas, mas não é. As consequências são vastas e profundas demais para sorrirmos sobre o assunto.

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